terça-feira, 27 de outubro de 2020

Quantos Seremos?


Não sei quantos seremos, mas que importa?!

Um só que fosse, e já valia a pena
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.

Miguel Torga, in Câmara Ardente

sábado, 17 de outubro de 2020

Moinho

 

São as águas
da delicadeza
que movem o mundo.

Uma palavra amorosa,
um gesto,
uma carícia,
fazem a Terra
mais azul
e mais leve,
trazem à pele
a memória mais antiga:

Também somos um grão
de estrela e de infinito.

Roseana Murray, in Manual da Delicadeza



domingo, 11 de outubro de 2020





Não investiu contra nós como um vento impetuoso,
não incendiou sarças,
não nos forçou a desviar o olhar,
tremendo de revolta.
Era uma brisa dulcíssima,
Carícia nos cabelos e mariposa de luz.
E nós reconhecemo-la pela paz
que nos envolveu, profunda,
como cordeiros ao meio-dia,
quando nada mais conta
a não ser o sentimento solar de existir.
Não foi a mente, com efeito,
mas o nosso próprio corpo
que em primeiro lugar a acolheu
em longos goles de vida:
felicidade respirável.

Margherita Guidacci

quarta-feira, 7 de outubro de 2020


Tu acolhes a luz da vela
que os pequenos acendem ao alvorecer e à tardinha,
que gritam ao nascer da aurora,
pedindo emprestadas as tuas asas
para encontrar repouso.

Tu acolhes a luta dos pequenos,
a sua busca de paz
mil vezes sonhada e esperada
não sem tremor.
Os anos duros de paciência e fidelidade
para poderem fazer da vida uma luz.

Tu revelas-te aos pequenos que fazem
de cada sombra uma flecha de luz,
que se abrem como flores da manhã.

Eu temo homens e crenças
dos sábios e dos inteligentes,
que nem por um instante tentam
estar no presente,
a respirar no jardim de Deus.

Luigi Verdi