domingo, 28 de fevereiro de 2021


Como nómadas do deserto
cada dia desmontamos as tendas.
Bagagem ligeira impõe a viagem
e coração confiante.
Trago comigo rostos e perfumes e cores
e cada vez mais histórias de homens e mulheres:
troquei a riqueza do palácio
por um arco-íris.

Agora está livre o meu coração,
deixou de procurar segurança
e dia após dia vou
de começo em começo,
nómadas de amor.

Tu escancaraste a minha vida,
és vento que sopra e enfuna as velas,
seguir-te é coisa de gente corajosa.

A minha riqueza tornou-se fecunda:
os meus bens, o meu nome, que abre as portas
já não são um peso que entrava a viagem,
correia que trava o passo;
no caminho percorrido juntos
contigo e com os teus
mudou-se o ouro em pura luz
e em fogo que empurra a caravana.

De olhar fixo no sol
a cada aurora eu sei
que renunciar por ti
equivale a florir.
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[Marina Marcolini]

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

DEUS NO MEU QUINTAL


Alguns guardam o Domingo indo à Igreja.
Eu o guardo ficando em casa
Tendo um Sabiá como cantor
E um Pomar por Santuário.

Alguns guardam o Domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas Asas
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja
Nosso pássaro canta na palmeira.

É Deus que está pregando, pregador admirável
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final
Eu o encontro o tempo todo no quintal.

Emily Dickinson (1830-1886)
(Tradução de Manuel Bandeira)


 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

AMOR


“Amor é quem tu és. Quando não vives de acordo com o amor, estás fora de ser. Não estás a ser real. Quando amas, estás a agir de acordo com o teu ser mais profundo, com a tua verdade mais profunda. Estás a operar de acordo com a tua dignidade”
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Richard Rohr

Imagem: Maria e José - Pintura a óleo, Ruben Ferreira
 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

ESCUTAR

"Escutar significa oferecer um ombro onde o outro possa apoiar a mão, para rapidamente se levantar."

José Tolentino Mendonça

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

sábado, 6 de fevereiro de 2021

O DEUS DA MINHA INFÂNCIA


O Deus da minha infância
era loiro
como trigo sereno ondulante
cavava fundo a terra
adormecida e as cigarras
cantavam nela ao fim da tarde:
explodia vivamente
em cada sol
nascia pela manhã e velava de noite
o meu sono
a solidão tranquila
do rosto moldado na almofada.

O Deus da minha infância
era azul
estava em todo o céu como o azul
era as gotas de orvalho
sobre as folhas
o ar muito fino e respirável
que a cada hora atravessava a folhagem
os ramos muito altos
e os enaltecia de verde.

O Deus da minha infância
brincava
com os gatos que saltavam dos telhados
com os cães que adormeciam ao sol
com as crianças
que rodopiavam em rodas
em torno do pião
que rodava.

O Deus da minha infância
era pobre
escutava as vozes das lareiras
comia a broa ázima
pousava sobre a mesa de castanho velho
e detinha-se nas linhas
fundas da madeira
nos seus nós escurecidos:
assomava às janelas
de vidro barato
coalhadas da humidade
descia pela garrafa de azeite espesso
misturava-se com o vapor acre do vinho
crepitava nas brasas entre castanhas e fumo
afundava-se nas rugas dos velhos
de mãos encarquilhadas
pelo frio e pela usura.

O Deus da minha infância
se acaso me visita
fala-me das vezes temerárias
em que me aventurava nas águas agitadas
de um rio
em que afundava o corpo
na terra ainda quente
e abraçando-me a ele
leva-me de volta ali
a esse lugar remoto de onde nunca parti
a essa funda origem
aonde O conheci.
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Excerto do poema "O Deus da minha infância", de Bernardo Pinto de Almeida