terça-feira, 31 de julho de 2007

Vê com os olhos do coração

« A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que há em ti são trevas, quão grandes são tais trevas!» - Mateus 6, 22,23

Conta a história que uma jovem e dinâmica mulher de negócios mostrava sinais de fadiga e stress. O médico receitou-lhe tranquilizantes e pediu-lhe que voltasse para uma consulta duas semanas depois. Quando ela voltou, ele perguntou-lhe se se sentia diferente.
- Não.- respondeu; mas tenho observado que as outras pessoas parecem estar bem mais relaxadas.

Normalmente, vemos os outros não como são, mas como nós somos. Uma pessoa é, num sentido real, o que ela vê. E ver depende dos olhos. Jesus usa a metáfora dos olhos com mais frequência do que a da mente ou da vontade. O velho provérbio, "os olhos são as janelas da alma", contém uma profunda verdade. Os nossos olhos revelam se as nossas almas são espaçosas ou entulhadas, hospitaleiras ou censuradoras, compassivas ou repreensoras. O modo como vemos os outros é normalmente o modo como vemos a nós mesmos.

O julgamento depende do que vemos, de quão profundamente olhamos para o outro, de quão honestamente encaramos a nós mesmos, de quão dispostos estamos a ler a história humana por trás do rosto apavorado.

Brennan Manning- O Evangelho Maltrapilho

domingo, 29 de julho de 2007

Contentamento


É quase impossível encontrar uma definição completa e definitiva para a felicidade, mas é facto que, qualquer que seja a sua definição, estará associada aos estados de espírito com os quais atravessamos a vida. Podemos, inclusi­ve, alongar a discussão a respeito da distinção entre ser feliz, estar feliz e sentir–se feliz, e sobre como a felicidade é diferente da alegria, que, por sua vez, é diferente da euforia. Mas isso é complicar demais as coisas. O facto é que, se és feliz, então sentes-te feliz, e se tu estás feliz, também te sentes feliz, e esse sentimento de felicidade é, necessariamente, um estado de espírito, que pode ser duradouro, razoavelmente comum ou eventual. Nesse caso, prefiro simplificar um pouco mais e trocar a palavra "fe­licidade" por "contentamento", que defino como a capacidade de estar satisfeito (de adaptar–se) em qualquer situação. Esse tipo de contenta­mento não se explica pelas circunstâncias favoráveis e ou confortáveis, mas sim pela capacidade de exercer domínio sobre o estado de espírito de tal maneira que os factores externos que o abalam sejam em número cada vez menor.Contentamento é uma satisfação de dentro para fora. Vicente de Car­valho traduziu muito bem essa experiência do contentamento quando disse que a felicidade, essa árvore frondosa e cheia de frutos, existe sim, mas existe no lugar em que a plantamos, e o problema é que quase nunca a plantamos no lugar onde estamos. A expressão mais comum para os infe­lizes é que serão felizes "assim que...". Assim que arranjarem um emprego novo; um romance novo; um carro novo; uma casa nova; um chefe novo; e tanto mais, cada vez mais.Esse estilo de vida "assim que..." coloca a felicidade no futuro e perpetua o descon­tentamento, que impede a alegria de des­frutar o presente, as pessoas que temos em volta, as circunstâncias reais e imediatas que nos oferecem possibilidades de realização. A palavra contentamento deriva do latim contentu ("contido") e sugere a ideia de conteúdo. Nesse caso, contente é aquele que tem conteúdo em si mesmo ou que é capaz de usufruir o conteúdo da realidade na qual está inserido. Em outras palavras, em qualquer lugar, em qualquer companhia, e em qualquer circunstância existe possibilidade de contentamento mas somente para aqueles que sabem explorar a sua riqueza interior, ou as potencialidades do momento, ou ambas.Um momento de contentamento é aquele em que tudo parece certo: não há necessidade de mudar o que estás a fazer, nem a pessoa com quem estás, nem o lugar onde te encontras.

Ed René Kivitz, Vivendo com propósitos

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Parar para ver, ouvir e ler...


Pára um pouco! Desfruta tranquilamente deste momento; ouve com atenção estas palavras, contempla estas imagens, viaja ao som desta melodia... Por instantes, esquece o mundo lá fora, os teus múltiplos afazeres, as tuas pesadas pré-ocupações... Este momento também é importante! A vida é Aqui e Agora!




Autor: Rui Santiago -
http://www.youtube.com/user/ruisantiagocssr

Pára mais um pouco. Parar é importante...
Olha, vou fazer-te uma: como foi o teu dia? Não, não, não quero que me digas se correu bem ou mal, não quero que me digas que fizeste isto ou aquilo, não! Interessa-me saber quem és, quem foste hoje. Vá lá, como foi o teu dia? És mais feliz? Quantos sorrisos plantaste hoje? A quantas pessoas enriqueceste hoje, com a tua passagem?
Vês? Há perguntas difíceis, não há? Mas são as mais importantes. Pára um pouco! Liberta-te por um pedaço de tantas coisas urgentes! Sabes, passas os dias à volta de coisas urgentes, e costumas esquecer as importantes. É sempre tudo tão urgente, não é? A vida pede-nos tudo com urgência, tudo para ontem! E o importante, pode sempre ser amanhã. Na maior parte das vezes, um amanhã que demora a chegar…E na lógica das coisas urgentes, deixamos de viver e passamos a existir.Viver como pessoa humana é construir-se em cada dia, é ter-se nas mãos e fazer-se sem descansos, com a argamassa da Amizade, os tijolos do Amor, as ferramentas da Verdade. O ser humano não nasce feito, acabado. Temos que construir-nos como pessoas felizes, e isso acontece na medida em que souberes inventar relações de Amor, relações de bem-querer com aqueles que te rodeiam.
Vou dizer-te um segredo – fixa-o bem! – viver é conviver. Viver é conviver com os outros, porque ninguém é feliz sozinho. Mas a lógica das coisas urgentes costuma empurrar-nos sempre para o egoísmo, não é assim? Pensa bem: quantas vezes hoje te entraram pelos ouvidos frases deste género: “Isso é cá comigo”, “cada um que se arranje”, “eles são eles, eu sou eu”; quantas vezes as ouviste? E, já agora, quantas vezes as disseste? Às vezes, parece que vivemos enroscados em nós próprios, girando infinitamente sobre o nosso belo umbigo; e assim, perdemos o gozo de viver, o sentido dos nossos dias e a alegria que o nosso coração nos pede. Porque nos fechamos ao diálogo, à partilha, à fraternidade, à amizade. Fechar-se aos outros é fechar a porta ao encontro com Deus. Abrir-se aos outros é pôr-se na disposição de ser encontrado pela novidade surpreendente do seu Amor.
Olha, vou dizer-te mais um segredo: com Deus, ninguém fica a perder! A Fé verdadeira, aquela ao jeito de Jesus Cristo, não é uma piedadesinha domingueira, assim a cheirar a bafio e a bolas de naftalina, não! A Fé é uma arte de viver com sentido, a Fé é um descobrir os horizontes máximos da vida em Deus. O Seu Amor é a fonte, o Seu Amor será, no fim, a plenitude.Olha, e se tudo isto fizesse sentido também para ti? E se te abrisses hoje à novidade de Deus? Não o das imagens gastas, mas o Deus de Jesus de Nazaré, aquele Deus que faz nascer Vida Nova no coração daqueles que o acolhem – como tu…
Rui Santiago

terça-feira, 24 de julho de 2007

Relações(2ª parte)


Já te falei de auto-estradas, de carreirismo e de sprinters…

Queria ainda falar-te de duas palavras que conheces muito bem: entras num supermercado e, se reparares, encontras-te num mar de produtos light e artigos descartáveis.Tudo é light, dos sumos às manteigas, e tudo é descartável, desde as fraldas às giletes.O pior é que o critério light e descartável aninhou-se nas relações entre as pessoas. As relações são cada vez mais light, sem compromisso real, sem disponibilidade para aguentar sofrer naqueles momentos em que amar faz doer, sem promessa de fidelidade incondicional… A relação light é a típica relação do “vamos ver se dá”…O resultado imediato das relações light é que se tornam rapidamente relações descartáveis, relações de “usar e deitar fora”…

Se todos acordássemos para isto, o mundo poderia começar a ser diferente…Se as auto-estradas fossem só uma questão de alcatrão… mas são o sinal de uma mentalidade que nos entrou nas veias, a mentira de fazer da vida uma carreira, que nos impede de nos sentarmos nos bancos de jardim do coração a partilhar o dia com os amigos porque, na verdade, não há amigos mas sim adversários.

Se os critérios light e descartável fossem só uma questão de calorias e vasilhame… mas são o sinal de uma superficialidade que se nos colou ao coração e vai reduzindo as nossas relações a encontros à flor da pele e atitudes que não transformam mais que a casca da vida. Se todos nos déssemos conta de que criar relações verdadeiramente humanas é optar por viver em atitudes e gestos de bem-querer e atenção aos outros, de compromisso vital para que ninguém fique mais triste, pobre ou infeliz por nos ter conhecido…Se percebêssemos que este é exactamente o segredo mais profundo da nossa construção pessoal…Se tivéssemos os olhos bem abertos, perceberíamos que só o amor nos constrói…E se tivéssemos o coração suficientemente disponível para assumir o amor como sentido dos nossos dias, tenho a certeza que seríamos muito mais felizes!

Rui Santiago cssr

domingo, 22 de julho de 2007

Relações(1ª parte)


Uma das grandes invenções do nosso tempo são as auto-estradas. Até em relação à informática e aos meios audiovisuais se fala já das “auto-estradas da comunicação”. Só que reduz-se a tal “comunicação” a um intercâmbio de informação…É um sinal bem claro do que vem acontecendo às relações entre as pessoas nas últimas décadas. Cada vez está mais fácil e imediata a comunicação, mas cada vez são mais precárias e breves as relações. Porque talvez não nos andemos a encontrar ao nível certo…

As auto-estradas estão construídas para ultrapassar. Por isso é que é impossível ter uma só faixa de rodagem, porque isso dificultaria as ultrapassagens. A característica que identifica uma auto-estrada é possibilitar do início ao fim a “arte da ultrapassagem”.Ora, é exactamente a imagem do mundo que vimos construindo, onde as pessoas não se encontram verdadeiramente nem caminham juntas. Apenas se cruzam e entrecruzam enquanto se tentam ultrapassar.E o pior é que estamos a inocular esta “arte da ultrapassagem” no sangue inocente das crianças. Cada vez que comparamos uma criança com outra para a fazer sentir-se diminuída, ensinando-a a tirar daí motivação para ultrapassar a outra criança, estamos a inscrever desde logo no seu inconsciente (onde ganham raízes os valores que moldam a personalidade) que o importante não é ser bom. O mais importante é ser melhor que o outro. Mais importante que vencer-se cada um a si próprio, nas suas limitações e dificuldades, é vencer os outros. E assim vamos desde cedo envenenando o futuro…Deixamos de ter amigos porque os olhamos como rivais, os companheiros de caminhada passam a ser adversários, e os que caminham mais devagar não passam de estorvos.

Sabes que mentalidade é esta?A mentalidade daqueles que não esperam da vida mais que uma carreira!E não penses que isto está tão longe de ti como te pode parecer. Pensa bem…Desde pequenos, à célebre pergunta: “O que queres ser quando fores grande?”, somos ensinados a responder com uma carreira: “Quero ser professor, médico, advogado, veterinário…”. Quase nenhuma criança foi ensinada a responder: “Quero ser feliz!”Conheço muita gente que troca a vida por uma carreira. E isto – garanto-te – não é mais que um suicídio em câmara lenta.Foi esta mentalidade de “carreirismo” que inventou as famosas auto-estradas do coração, onde os outros não são mais que adversários a deixar para trás quanto antes.No nosso mundo, os heróis são todos “sprinters”.

O logótipo do sucesso é sempre alguém que, orgulhosamente só, chegou mais longe e mais rápido que todos os outros que queriam chegar ao mesmo, ficando assim no topo de um pedestal onde apenas há lugar para um, sobre todos aqueles que, por terem ficado para trás, lhe são submissos, ainda que a submissão esteja enraizada na inveja, no desejo de ver o outro fracassar ou na injustiça.Os heróis são os sprinters, os que chegam à meta em primeiro lugar e sozinhos. Quanto mais distantes dos seguintes, maior o brilhantismo. Parar pelo caminho para dar a mão aos companheiros é perda de tempo e chegar à meta de mãos dadas é “falta de espírito competitivo”. E no nosso mundo, só os que competem podem triunfar…(continua)

Rui Santiago cssr

quinta-feira, 19 de julho de 2007

O diabo e o seu amigo

Saiu o diabo a passear, um dia,
com um amigo seu; viram um homem
que, ali perto, se inclinava para o chão
e parecia pegar em algo caído sobre a estrada.

«Que terá ele encontado?». pergunta o amigo.
«Foi um pedaço de Verdade», diz o diabo.
«E isso não te perturba?», volta o amigo.
«De modo algum, respondeu-lhe o demónio;
deixarei, simplesmente, que ele faça,
daquele pedacinho de verdade,
nem mais nem menos que uma crença religiosa!».

Uma crença religiosa é como um sinal de trânsito que aponta o caminho da Verdade. As pessoas que se agarram ao poste e à tabuleta, evidentemente não caminham para a verdade por terem a falsa sensação de já a terem encontrado.

Anthony de Mello, O canto do pássaro

terça-feira, 17 de julho de 2007

A Loja da Verdade

Mal pude crer nos olhos quando vi
o nome do lugar: A Loja da Verdade.
Ali eles vendiam a Verdade!

A funcionária ao balcão foi delicada:
que tipo de verdade eu procurava...
só parte dela ou a Verdade toda?
Pois claro, a Verdade toda.
Não me dê decepções nem altos pensamentos.
Eu disse que gostava da Verdade
muito clara, simples, inteira.
Ouvindo isto, ela conduziu-me então
para o outro lado do balcão onde vendiam,
somente aí, a tal Verdade inteira.

O comerciante olhou-me compassivo
e mostrou-me a «etiqueta» com o preço:
«Como assim?», perguntei, determinado
a conseguir, custasse o que custasse
a Verdade toda.
«É que... se levar esta Verdade,
o preço que por ela vai pagar
será não ter mais descanso na vida».

Foi o que disse o homem do balcão
e eu, triste, afastei-me dessa loja
porque pensava eu, tolo, que podia
achar a Verdade inteira... a baixo preço.
Não estou pronto ainda para ela;
quero descanso e paz, de vez em quando;
sinto que preciso ainda de racionalizar,
de usar defesas,
escondendo-me atrás dessas muralhas
que levantei com crenças imbatíveis!

Anthony de Mello, O canto do pássaro

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Medos - Parte III

À medida que vou conversando contigo, não me sai da cabeça a imagem dos mineiros a aventurar-se em grutas que nunca ninguém percorreu…Há sempre os que ficam à porta da mina, “à superfície”, como eles dizem. A gruta é escura, os túneis desconhecidos, e o medo é mais forte…Tal e qual como na vida: há sempre os que ficam à porta, na superficialidade da existência, no lado de fora da realidade. E há os outros… os que entram. Não sem medo, não sem incertezas, não sem dificuldades… mas entram! E depois, desde a superfície até ao filão de minério que procuram, ainda há um caminho por contar. Mas, para contar, é preciso fazê-lo primeiro…Nesse caminho, há pedaços da gruta que são escuros e bates com a cabeça nos tectos mais baixos, ou tropeças nalgumas pedras mais levantadas e cais. No chão, descobres também que há outras pedras na parede, logo ali, onde podes apoiar as mãos para te levantares outra vez, porque o minério que procuras ainda te chama ao longe. Nesse caminho, há passagens tão estreitas que te arrancam pedaços e te fazem gemer por momentos a dor dos cortes. Mas isso é já depois de teres passado…E continuas a caminho, talvez ensanguentado, mas continuas. E dás-te conta de que o sangue rapidamente estancou. E sorris até, ao reparares que deixas por momentos atrás de ti um trilho marcado com o teu sangue para quem vier atrás, um apelo delineado com a tua própria vida para quem quiser seguir-te na procura dos tesouros que “à superfície” não se encontram.

E começas a sentir-te verdadeiramente feliz. Pela primeira vez saboreias a felicidade de construir um caminho que vale a pena, para ti e para os outros.À medida que avanças, encontras também pequenos charcos de água incrivelmente fresca que brota de nascentes que tens ao alcance da mão. E sentas-te, refrescas-te e saboreias a doçura de momentos como só dentro da gruta tiveste a oportunidade de experimentar. E, ao parares, dás-te conta de que há um companheiro que estava contigo nos primeiros metros de caminhada e já deixou de te acompanhar: o medo. Perdeste o medo, não porque lhe fugiste, mas porque o olhaste de frente e lhe passaste por cima. E diante de gente corajosa, o medo deixa-se ficar para trás.Sentiste-te livre! Descobriste que a liberdade verdadeira é a ausência de medos, e ficaste ainda mais feliz, porque só os homens livres podem ser felizes.

Continuaste a caminhar…E foste encontrando de tudo, entre galerias que se faziam aos pulos e de braços abertos, e passagens tão estreitas que as fazias deixando pedaços de carne e riscas de sangue nas pedras mais salientes. Mas estavas feliz, profundamente feliz, à procura do minério valioso que só na profundidade da gruta podias encontrar.Havia momentos em que caminhavas assobiando, saboreando ainda o fresco das águas das nascentes no teu rosto e nos teus músculos; havia outros em que caminhavas gemendo, sentindo os passos esforçados das pernas ensanguentadas. Esforçados, mas nunca hesitantes!Até que… finalmente!Finalmente…
Abriu-se aos teus olhos uma galeria cujas paredes tinham um brilho que jamais havias sequer imaginado enquanto tinhas andado “à superfície”… Um brilho que mal te cabia nos olhos e certamente não te cabia nas palavras.Tinha valido a pena!Nunca te tinhas sentido tão feliz!Nunca te tinhas deslumbrado com tamanha maravilha!Tudo o que conhecias te parecia de repente mais pequeno…Nesse momento sentiste uma pena imensa de tantos que tinham ficado à entrada da gruta, derrotados pelo medo das inseguranças e das incertezas do que poderia acontecer. Sentiste pena deles…E depois começaste a rir… A rir de vitória por teres enfrentado nos olhos o teu próprio medo. Quase dançavas de alegria com o gozo que dá ser livre! E até as feridas do caminho se transformaram a teus olhos. Farias tudo novamente, mil vezes se fosse preciso, porque agora experimentavas que descer à gruta tinha sido o melhor que já te acontecera na vida. Contra o medo, contra as incertezas, contra as palavras desanimadoras dos que na superfície se despediram de ti, contra os que te chamaram louco. Porque intuías no coração, no meio de tudo isso, que estava em causa a tua vida.E estava…Tudo menos deixar de viver, por ter medo de que a vida nos possa doer!



Rui Santiago cssr

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Medos - Parte II

Mas o mundo não quer que estas coisas se digam muito alto… Não, porque isto põe tudo em causa, e depois começa tudo a transformar-se, tranquilidades a desmoronar-se e rotinas a perder-se. E o mundo tem muito medo que isto tudo aconteça…O que se ouve gritar e repetir nos altifalantes do mundo faz da vida uma carreira, da felicidade uma tranquilidade sem sabor e uma alegria sem sentido. De tal maneira, que ao fim de cada dia quase apetece ir espreitar nas janelas das casas e atirar a pergunta que vi uma vez escrita numa parede da cidade: “Então, foste um bom robot hoje?”Mas nem me responderiam… O que estivessem nesse momento a ver na televisão seria para eles muito mais importante. Pelo menos, a televisão não faz este tipo de perguntas nem põe em causa o sentido da vida e o sabor dos dias. E tudo isto se entende, porque nas entrelinhas de tantas palavras, luzes e movimentos das nossas cidades, serpenteia a palavra “medo”…
Uma das invenções mais recentes da humanidade são as fechaduras. Durante milénios havia apenas trancas nas portas, que qualquer um podia abrir. Foram já os nossos bisavôs e avós que inventaram as fechaduras com chave. Mas ainda não chegava de segurança… Por isso, os nossos pais inventaram as portas blindadas e os vidros inquebráveis… Depois, nós especializámo-nos em sistemas de vigilância e segurança que utilizam as mais complexas técnicas descobertas, desde circuitos fechados de vídeo a detectores de movimento, sensores infravermelhos… e tudo o resto que serene tantos medos…

O pior é que nesta história recente de fechar as portas, também o coração se tem ressentido… Fechamos as portas de casa aos imprevistos da rua, e fechamos as portas do coração aos imprevistos da vida. Tudo em nome da segurança…Mas não é com seguranças que se constrói uma vida feliz; é com opções arrojadas, riscos, iniciativas, enganos e recomeços.Vou dizer-te um segredo: o medo é o que de mais autodestrutivo podes ter ao alcance do coração. Não te deixes vencer! Mas resiste também à tentação de lhe fugir. Ele perseguir-te-á incansavelmente. Só se vence o que se olha nos olhos e se combate de frente, cara a cara, de peito aberto e pés ao caminho. Força! Só assim vale a pena viver: lutando! Construindo, arriscando, descobrindo, inovando, corrigindo… só assim vale a pena. E não temos outra oportunidade.
Também sei que aleija de vez em quando.Também sei que há passos que se dão e deixam algum rasto de sangue atrás. Sim, também sei… Mas, mesmo assim, juro-te que só vale a pena viver se estivermos dispostos a sangrar!Ainda me lembro das vezes sem conta em que rasguei os joelhos para aprender a andar de bicicleta. Num deles ainda tenho as marcas. E já lá vão uns anos… Mas valeu a pena! Uns anos depois de tantos tombos, pude saborear longos passeios entre os pinhais na aldeia dos meus avós, a pedalar na minha bicicleta. E lembro-me como ia ao fim das tardes de verão tomar um banho ao rio, e voltava em caminhos de terra batida que contornavam pedras e arbustos dos que não se encontram nas cidades. E muitas outras lembranças, e muitos outros sabores dos meus longos passeios de bicicleta… Mas, para isso, ainda tenho num joelho as marcas de tantas quedas. Sabes o que te digo? Valeu a pena!!!E na vida também é assim… (continua)

Rui Santiago cssr

Jovens Redentoristas

terça-feira, 10 de julho de 2007

Medos - Parte I

Começa a preocupar-me a tranquilidade do meu mundo e a passividade de tantos irmãos ao meu lado…
Todos procuram desesperadamente seguranças, e não transformações. E nem imaginam o que estão a perder… E nem imaginam que estão a fechar as portas à felicidade verdadeira, que normalmente vem embrulhada no papel dos imprevistos, adornada com o laço das novidades e nas mãos de amores que nos propõem virar de pernas para o ar o nosso coração.
Sim, nem se dão conta de que viver seguro num palácio de portas trancadas evita os assaltos, mas também impede as visitas dos amigos…
Se uma mão descesse do céu obrigando os homens à escolha entre a Felicidade e a Tranquilidade, conheço muitos que abraçariam a Tranquilidade sorridentes. Dão-me pena… As seguranças das vidas tranquilas são mais apreciadas e procuradas que as transformações das vidas felizes.
Não consigo entender uma juventude que não sonha com mais do que uma “vida normal”… Vidas extraordinárias, vidas arriscadas, coração em sobressalto, tudo isso é bonito de ver nos filmes e admirar nos heróis de todos os tempos, os de ontem e os de hoje. Mas os heróis são sempre os outros… Vidas dessas são para ser admiradas e aplaudidas; não vividas.
Porquê?!
Não entendo! Juro que não…
Gostava de perceber melhor as causas do medo. Sim; porque é o medo a raiz de tudo isto. Não duvides…
Se lhes deres a optar entre uma vida feliz mas com riscos, perigos, incertezas, possíveis desilusões, quedas e recomeços, e uma outra vida mais tranquila, monótona até, vulgar e medíocre, mas sem inseguranças, sem riscos, desilusões, possíveis crises nem necessidade de esforço, temo que a maioria, sem hesitar, escolha a segunda.
As pessoas não se atiram de caras à vida, porque têm medo de se aleijar.
Os jovens não assumem grandes riscos, porque têm medo de se enganar.
Quase ninguém assume grandes transformações, porque tem medo das incertezas que sente como espinhos no coração.
São cada vez menos os que amam de verdade, porque são cada vez mais os que têm medo de sofrer.
E assim vamos criando um mundo de gente tranquila mas não verdadeiramente feliz, segura mas não apaixonadamente transformada.
Tenho pena que a maior parte dos meus irmãos ainda não se tenha dado conta de que só vivemos uma vez. E o que se decide numa só possibilidade não pode ser vivido a meio gás!
Tenho pena que tantos se deixem viver pela vida, em vez de a agarrarem nas mãos e perguntarem o que hão-de realmente fazer com ela.

Tenho pena que os homens, por medo, cada vez mais se limitem a existir, e deixem de viver de verdade. Porque viver é infinitamente mais que existir…
Viver de verdade é viver apaixonadamente.
Viver apaixonadamente é pôr o amor à frente das seguranças, a felicidade que se constrói à frente da tranquilidade que nos amarra. (continua)

Rui Santiago cssr

sábado, 7 de julho de 2007

Desabituar-se


Desabitua-te!
Desta janela em que escrevo, vejo os comboios a passar lá em baixo, não muito longe de mim. Mas daqui quase não os escuto. No entanto, há casas que estão mesmo coladas à linha férrea. Antes, admirava-me como conseguiriam essas pessoas dormir. Agora já não. Porque falei com algumas e revelaram-me o segredo: “nos primeiros dias ninguém pára, mas depois a gente habitua-se, já nem se dá conta”, disseram-me elas. Eis a maravilhosa capacidade de nos habituarmos.Mas depois, pus-me cá a pensar na nossa vida, e prefiro chamar-lhe assim: eis a perigosa capacidade de nos habituarmos. Porque o barulho dos comboios é como tudo: quando nos conseguimos habituar, deixamos de dar conta. E vejo que nos costumamos habituar a coisas demais. O hábito faz-nos perder a atenção dos acontecimentos, rouba-nos o gozo das novidades, e o sabor irrepetível dos dias; impede-nos de crescer. As pessoas habituam-se a viver juntas, e deixam de prestar atenção umas às outras. Um casal habitua-se ao casamento, e perdem o gozo do namoro. Esquecem a necessidade de se seduzir todos os dias. Habituam-se. E esquecem-se que têm que se pedir um ao outro de novo em casamento, em cada manhã.Deixamos cair até a nossa Fé na rotina do hábito, e tudo se vai tornando estéril. Vamos cumprindo rituais, aos quais chamamos obrigações e deveres. Vamos-nos habituando a cumpri-los, mas sem percebermos verdadeiramente para que servem.Habituamo-nos a ser o que somos, e deixamos de sonhar em ser mais. Habituamo-nos ao ritmo quotidiano, a que chamamos vida, e deixamo-nos engolir por ele. Habituamo-nos às correrias, habituamo-nos às inutilidades sempre tão urgentes, habituamo-nos a andar tristes. Habituamo-nos a encher a boca de queixas e lamentos. E assim, deitamos fora a vontade de mudar e viver de novo cada dia que nos calha em sorte. E depois… depois ainda somos capazes de dizer, com o rosto triste e um encolher de ombros desolado: “É a vida! Temos que nos habituar!”Não, não, amigo! Para ser verdadeiramente Vida, tens é que te desabituar!

Rui Santiago cssr

Hábito


O hábito torna-nos cegos às maravilhas do mundo - indiferentes e inconscientes perante os milagres quotidianos -, embota a força dos sentidos e dos sentimentos - torna-nos escravos dos costumes, mesmo tristes e culpados: suprime a vista, espanto, fogo e liberdade. Escravos, frígidos, insensatos, cegos: tudo propriedade dos cadáveres. A subjugação aos hábitos é uma subjugação da morte; um suicídio gradual do espírito.

(...)O hábito destrói a pouco e pouco o maior dom de Deus - a liberdade. Enquanto livres, somos feitos à imagem de Deus e capazes de nos aproximarmos, de nos reunirmos a Ele. Mas os hábitos, ao impedirem a evasão da mediocridade usual e os novos nascimentos, cancelam a semelhança divina, afastam o homem de Deus(...) Cristo promete o reino dos céus àqueles que se tornam pequenos - precisamente porque as crianças ainda não são afectadas pela camisa-de-forças dos hábitos.

Giovanni Papini - Relatório sobre os homens

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Chamo-Te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.


Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.


Sophia de Mello Breyner Andresen

A Paz sem vencedor e sem vencidos

A paz sem vencedor e sem vencidos
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Mudar ou não mudar...

Fui um neurótico por muitos anos.
Cheio de depressões, angústias e egoísmos.
E toda a gente me dizia que mudasse;
acrescentando:«hás-de ter muitos amigos,
com esse feitio».
Eu sentia isso e concordava, ao mesmo tempo;
e queria até mudar, mas não podia;
e tentando, tentava o impossível.

Mas o que mais me feriu foi um amigo,
o meu melhor amigo, ele também, sempre a dizer:
«tu precisas de mudar, estás neurótico!».

Certo dia, porém, este amigo foi diferente:
«Não mudes! - disse. Fica assim como és!
Eu gosto de ti; não mudes;
não consigo deixar de te amar!».

Que melodia foi, nos meus ouvidos,
esta frase do amigo: «Não mudes... Não mudes!
Não mudes... eu gosto de ti!».

Posto isto, relaxei; voltei à vida
e, oh grande maravilha, foi então que eu mudei!

Agora sei que não teria conseguido, realmente, transformar-me, até ao dia em que encontrasse alguém que me amasse do modo que eu era: com ou sem mudança!

É assim que Vós me amais, oh Deus?

O canto do pássaro, Anthony de Mello