domingo, 22 de abril de 2007

O mendigo


Não sou um grande contador de histórias(uma arte admirável), mas vou tentar contar, com as devidas limitações, um sonho que tive há muito e que ainda hoje está tão vivo e nítido na minha memória. Foi um sonho, não foi um pesadelo... Eu não queria acordar...
Estou no centro de uma cidade enorme, percorro uma avenida cujo fim não consigo vislumbrar. Até onde os meus olhos conseguem alcançar, no fundo do horizonte, avisto um deserto árido e tenebroso. Ao longo da avenida, caminha uma multidão de seres que me parecem humanos mas, ao mesmo tempo, me parecem completamente destituídos de humanidade.
Não há luz na cidade. O sol está ausente durante quase todo o sonho. O céu está coberto por um véu negro de escuridão impenetrável. O ar que respiro é oprimente e impregnado pelo cheiro das almas doentes que vagueiam pela avenida apressadas e indiferentes umas ás outras.Todas elas parecem rumar para o deserto que vislumbro no fundo do horizonte.
Penso que deserto será aquele: o deserto das suas vidas? O inferno? O fim de tudo ou o princípio de nada?
A certa altura, apercebo-me que nem todos caminham em direcção ao deserto estampado no fundo do horizonte. Alguns seres que me parecem claramente diferentes dos restantes, estão recostados nas paredes das casas e estendem as suas mãos para os que passam sem os ver. Neste sonho, consigo ter a percepção do interior do coração e da alma das pessoas, e passo por elas sem que se apercebam da minha presença. Julgo ser um ser etéreo.
O que vejo no coração e na alma daqueles seres que caminham apressados para o nada no fundo do horizonte? Vejo corações vazios; prisioneiros de si mesmos; oprimidos; sem amor e sem liberdade. Vejo almas cheias de si mesmas; cheias de nada; um deserto de solidão em cada uma. Mas, quando olho mais atentamente para os outros seres parados junto ás casas, com as mãos sujas e gastas estendidas num gesto carente de ajuda e partilha, perco a percepção anterior e vejo apenas seres que me parecem tão humanos quanto a humanidade almeja ser. Têm algumas semelhanças físicas com os mendigos da realidade da vida de cada um de nós, e com os quais nos cruzamos quase diariamente quando atravessamos apressados as ruas e avenidas das cidades onde moramos. Contudo, pressinto neles um mistério insondável.
Aproximo-me de um desses mendigos que me estende ambas as mãos. Vejo no seu rosto traços da indiferença e da rejeição das pessoas que passam. Olho no fundo dos seus olhos e vejo um quadro da solidão que acompanha os seus dias. Olho com mais profundidade e sou invadido por um sentimento de compaixão e compreensão profundos que não consigo ocultar. O mendigo permanece de mãos estendidas, e eu sem saber bem o que fazer, revolvo os bolsos sem encontrar moedas ou notas. Com um gesto de profundo pesar, digo-lhe que lamento, mas não tenho nada para lhe dar. Ele estende ainda mais as suas mãos que parecem clamar pelas minhas. Não sei então o que fazer e, com um gesto espontâneo e natural, estendo-lhe as minhas mãos vazias e agarro as dele. Entrelaçamos as mãos, e pela primeira vez, vejo-o sorrir( como certamente há muito não sorria). É um sorriso de criança encantada, deslumbrada perante o milagre de existir.É o sorriso transbordante de quem sempre viveu num deserto morrendo à sede e, inesperadamente, encontra uma fonte onde pode momentaneamente saciar a sua sede. É o sorriso de um homem profundamente grato pelo meu gesto simples e afectuoso.
Naquele momento, eu queria que ele soubesse que, para mim, aquele sorriso era a dádiva mais preciosa. Eu também me sentia só e esquecido naquela cidade cheia de seres vazios. Eu também sentia sede...
O sonho não acaba aqui...Olhei de novo com profundidade os olhos do mendigo enquanto sorria, e vi nascer do fundo uma luz muito brilhante e pura... A luz crescia e tornava-se mais intensa, até que transbordou o limite do seu olhar e inundou tudo... as casas, os seres cheios de nada, as almas moribundas...O véu escuro que cobria o céu desapareceu e um sol alegre, ameno e risonho iluminou toda a cidade. No fundo do horizonte, já não se avistava aquele deserto de solidão para o qual aqueles estranhos seres pareciam caminhar. Agora, eu via um jardim coberto de flores e árvores. O ar da cidade estava agora impregnado pelo perfume extasiante das flores. Ouviam-se notas de uma música distante que inspirava paz e serenidade. Aqueles seres antes tão apressados e agitados, paravam agora junto aos mendigos, agarravam as suas mãos estendidas e arrebatavam-os para uma dança de prazer e alegria. Também entrei na dança.
Enquanto dançava extasiado, acordei do sonho com um sorriso de criança a moldar-me os lábios. Finos raios de sol primaveril penetravam por entre as frechas da janela do nosso quarto e anunciavam o nascimento de um novo dia. Levantei-me com a alma serena, limpa e leve...Abri a janela e, por instantes, admirei profundamente a beleza que me rodeava...Tive a sensação de que tudo era novo, diferente... e que uma nova vida me havia sido dada de presente pelo mendigo do sonho que acabara de sonhar, e que ainda hoje está tão vivo na minha memória como a imagem do nosso primeiro beijo, ou o sorriso familiar daquela criança que acaba de passar por nós.

2 comentários:

Tina Di Mauro disse...

Very interesting blog. Kiss kis

Vilma disse...

Gostei desse sonho! :)